Alertado em todos os meios médicos e psíquicos sobre o perigo, o consumo do crack no Brasil só faz aumentar e a transformar seus usuários em flagelos humanos.
Já é um consenso entre médicos, policiais e pessoas especializadas na área de saúde química: o crack é o mal da década. Destruindo lares e pessoas, físicas e mentalmente, o crack chegou ao século XXI popularizado pelo seu preço baixo e acessível (10 reais) a todas as camadas sociais, tornando os usuários reféns do vício e dos traficantes, fazendo com que os usuários pratiquem desde pequenos delitos em casa à prostituição para sustentar o vício. Sem escolher sexo, gênero ou raça, o crack por onde passa deixa um rastro de devastação. Em Campina Grande não seria diferente. Apreensões diárias são feitas em bocas-de-fumo, mas a guerra contra as drogas é difícil e complexa. O que resta de esperança são as clínicas de recuperação para tratamento. O CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) que desde 2005 atua com viciados em álcool, crack e outras drogas, é um dos pontos de referência no tratamento por se diferenciar de outras clínicas psiquiátricas, ao não impor ao paciente a presença no local. Nessa entrevista com o psicólogo Sérgio Máximo Vieira, 34 anos, chefe da equipe médica do CAPS há dois anos, conversamos sobre a polêmica política de redução de danos, o sistema de saúde, o perigo da droga, aonde ela atua e sobre o tratamento médico.
Por que o crack é a mais devastadora de todas as drogas?
O crack e outras drogas que estão surgindo agora, que pensava-se ser sub produto do crack oriundo da Argentina, como o paco, mas descobriu-se que não é, estão causando uma dependência muito rápida nos usuários, o efeito dela é muito rápido e o usuário quer consumir cada vez mais a droga. É uma droga que falseia certos estímulos. Então, o paciente que chega aqui tendo sido usuário de crack não tem fome, não tem sono, preguiça, pelo contrário, fica bem ativo e na verdade alguns criam ate coragem de cometer alguns delitos. Por isso eles costumam se viciar muito rápido no crack e a porta de entrada para isso tudo ainda é o álcool. A maioria de nossos usuários é dependente de álcool. E a partir disso, por motivo de curiosidade ou amizade, começam a entrar no crack, alguns fazem uso do mesclado – que é a mistura da cannabis com o crack – e essa dependência hoje na Paraíba é muito crescente, muito grande. A gente começa a ver isso pelo interior do nosso estado. E as pessoas se viciam muito rápido.
O CAPS tem dados de pessoas da zona rural que estão viciadas e procurando tratamento?
12% do nosso publico de atendimento não é de Campina Grande. 88% é de Campina e 12% de fora. Claro, vale salientar que desses 12% existem outras drogas em tratamento mais enfocado aqui no caso principalmente que a gente fala de álcool.
O que leva o usuário ao Crack?
A curiosidade é o principal motivo citado por eles como uma fonte de chegado ao crack e a partir disso ele começa a se propagar, no sentido de trazer... muitas vezes eles procuram o caps inclusive até ter um canal de outra pessoa de estar pegando, de usando. E aqui desmistifica isso. Aqui é um lugar essencialmente de tratamento. Então acho que várias classes sociais utilizam o crack. É uma droga que em CG está custando 10 reais e hoje em dia estão vendendo agora o que eles chamam de meia pedra por cinco reais. Então o acesso dela é muito fácil e é uma droga que contêm substâncias que às vezes não sabemos nem o que é. Então, como os caras pegam meio quilo e fazem três quilos de tanto misturam que colocam, vendem com muita facilidade isso. O principal motivo que eles alegam para chegarem ao crack é por curiosidade, por amizade. Foi o que percebemos.
A que se deve o número alarmante do crescente número de crack no interior da Paraíba?
Acredito que seja por conta do efeito do crack talvez seja mais prazeroso que outras drogas. Então estão deixando de usar maconha para usar crack. E a gente percebe também que as vezes o usuário de crack só vem deixar o crack através desse desmonte voltando para a maconha, depois abandonando a maconha, e depois ele deixar. Até porque a gente trabalha com a política de redução de danos, em que o sujeito não consegue se livrar do vício e começamos a trabalhar uma melhor forma de usar isso. Então, já que ele não quer deixar de usar o crack, a gente tem que trabalhar uma forma em que usando o crack ele use da maneira correta. A gente percebe que a transmissão de hepatite, de AIDS, de usuários que usam crack na lata se cortam muito na boca e eles fazem a roda transmitindo a lata para os outros parceiros, eles conseguem transmitir outras doenças também. Além de estar ingerindo alumínio, metal, quando faz uso inadequado do produto na latinha, ou num “joelho” de pvc. Infelizmente o Ministério da Saúde propôs um cachimbo de madeira e pesquisas posteriores perceberam que esse cachimbo ainda transmitia o alumínio, porque eles queriam uma peneirazinha pra evitar que a pedra caísse.
No caso, o Ministério da Saúde...
... Ele viabiliza através da política de redução de danos o kit de Redução de Danos. Que é uma água destilidade, uma seringa descartável, o cachimbo para quando for usar crack. Só que a gente percebeu que isso está um pouco inviável. O usuário de droga injetável hoje ele tem reduzido bastante. Então para evitar que ele chegue em terreno baldio, para dissolver a cocaína pegue uma poça água, ou até urina, para dissolver a coca e fazer uso da droga injetável, a chamada roda de pico. Isso ainda existe, logicamente, mas isso pouco acontece. Então para ele diluir a coca, o que oferecíamos? Água destilada. Para não usar o crack na latinha ou no “joelho” de pvc, o que oferecíamos? O cachimbo. Então isso é uma forma de reduzir os danos do paciente que usa essas drogas, mas infelizmente outras formas de redução de danos tem que ser trabalhada, tendo em vista uma possível abstinência.
Como você vê a relação do aumento da violência na cidade com o aumento do consumo do crack?
Percebemos que não é uma droga tão barata assim. Não é como uma carteira de cigarro que com 2 reais e pouco você compra uma carteira. Então quando o usuário começa a usar crack ele começa a dar fim as coisas dentro de casa. E ai não tendo esse espaço para dar fim as coisas dentro de casa, empenhar documentos, sabe... roubar em casa, ele começa a praticar pequenos delitos fora de casa. E ai é onde reside o início da violência. Porque um usuário de cigarro não vai roubar para comprar seu cigarro. Agora um usuário de crack, além de ter a coragem de quando usa o crack de cometer esses delitos, para manter esse vício que ele tem vai praticar os pequenos furtos.
Voltando a questão da política de Redução de Danos. Você não a acha um tanto permissiva demais, não? Permitindo que o usuário se mantenha na droga.
È, isso é bastante questionado ainda, mas temos que levar em consideração um dos princípios do SUS que é o principio da universalidade, onde todos os brasileiros tem direito a um tratamento. Quer seja ele um usuário que está em abstinência ou um em que esteja em redução de danos. Não podemos negar de jeito nenhum o tratamento a um paciente desta natureza que não está conseguindo deixar de usar a droga. E tem que trabalhar a família. A família não pode jogar o usuário dentro do CAPS, como se o CAPS fosse resolver o problema. Que o CAPS não resolve o problema sozinho. A família tem que ser trabalhada também. Muitas vezes a família pensa que a dependência é safadeza, e não é. A gente comprova. Trabalhamos com a família essa questão de que a dependência química é uma doença. A dependência e a abstinência também. Então tem quer ser trabalhado para que não institucionalizemos o paciente aqui dentro, possa fazer uma reiniciação social, aonde ele volte a trabalhar, se reitere novamente com a família, com suas atividades que antes ele desenvolvia.
Qual classe social está mais exposta ao crack?
Nas pesquisas que fizemos recentemente aqui no CAPS, percebemos que a maioria dos usuários da nossa instituição são usuário de classe baixa. Lógico que chega de classe alta, mas estes usuários em geral procuram clinicas particulares, são viciados em outras drogas como ecstasy, “bala”, LSD, heroína. E aqui a maioria do nosso público é usuário de crack e álcool. E retomando a questão da permissividade na política de redução de danos, eu acredito que não, por conta que é bem taxado que a gente não quer que o usuário fique a vida toda só em redução de danos. O objetivo final é abstinência, mas em determinados casos, como o do crack, ele não consegue deixar. O vício é muito forte, a dependência é muito forte, então tem que ser trabalhado isso com as famílias para que eles possam deixar.
E sobre o Sistema de Saúde, qual a principal falha que você ver em relação ao crack?
A falta de políticas públicas mesmo, de atenção a saúde. A ligação do atendimento especializado, que é um CAPS, por exemplo, com quem ta lá na ponta fazendo um PSF. Então essa interação seria primordial. E como a demanda é muito grande de usuários de drogas na nossa cidade, no Brasil e no mundo, deveriam ter mais serviços substitutivos para que a gente acabasse de vez com a questão manicomial. Essa coisa manicomial é desumana, então quando se propõe um serviço substitutivo como o CAPS, como uma residência terapêutica, como um centro de convivência, nós trazemos aquela questão de hospitalidade, não de hospital mais. Traz uma questão que falamos muito que é de hospitalidade. Quem é que você trata humanamente, quem é que você traz para sua mesa, para comer junto com você. São estes usuários que estão adoecidos pela dependência ou abstinência. E tratamos da melhor forma possível no sentido mais humano nesse modelo de hospitalização Dia. Ou seja, ele só fica aqui durante o dia e às 17h vai para casa.
O que é que você acha das antigas internações realizadas?
É justamente isso. O CAPS veio pra substituir a partir de 2001 com a lei 10.216 do então deputado Paulo Delgado, esse modelo manicomial de atendimento está sendo substituído por esse serviço, o CAPS, Centro de Atenção Psicossocial, para que um tratamento mais humano, mais digno seja dado a essas pessoas. E não um tratamento aonde ele fique isolado da família, sem se reintegrar a sociedade, tratado de uma maneira mais desumana com contenção mecânica, com contenção química e só vai sair depois de 60 dias. Nós não. Nós trabalhamos com hospital de emergência, atende durante o dia e às 17h volta para casa. Tem pacientes que trabalha, tem os que só vem pela manhã, outros pela tarde, tem paciente que se estiver muito sério o seu problema o projeto terapêutico será intensivo, manhã e tarde. E assim depois a gente vai tirando, diminuindo esse projeto para que de fato ele se reintegre na sociedade.
Como é feito o tratamento?
O paciente chega aqui no CAPS ou por demanda espontânea – ele vem porque conhece alguém ou porque quer se tratar – ou por encaminhamento de alguma instituição (Ministério Público, Emergência Psiquiátrica, Conselho Tutelar). Ele chega aqui e vai passar por um cadastro, vai se observar se realmente ele tem alguma dependência química severa e vai ser feito um acolhimento com um profissional de nível superior, nesse acolhimento vai se traçar um projeto terapêutico a partir da história de vida daquele paciente. A partir da história de vida dele vai ser feito um projeto terapêutico singular e este paciente vai ter um técnico de referência da equipe e toda a equipe multidisciplinar vai trabalhar com este paciente dentro da instituição.
Qual foi o caso mais assustador que você, como psicólogo, já ouviu de algum paciente?
Aqui temos pacientes que, por exemplo, hoje, após o consumo excessivo de crack, ele dorme em cima de uma folha de papelão com a mãe em casa, porque deu fim a tudo e os traficantes vão lá e pegam. Se eles não levarem, matam o cara. Então a gente percebe que os pacientes não fazem os delitos fora, mas em compensação dentro de casa não deixam nada. Empenham até os documentos do povo dentro de casa. Isso é muito comum, sabe. E geral é mais dar fim, empenha. Já chegou o caso em que o usuário chegou aqui dizendo que precisava levantar um dinheiro porque deixou a namorada empenhada na boca de fumo. Seria cômico se não fosse trágico.
Questão etária. Existe alguma idade específica que o crack atinja mais.
A maior faixa etária que a gente percebe é de 20 a 30 anos. Um adulto-jovem. Homem principalmente dos 20 aos 25; e mulheres dos 25 aos 30. Mesma faixa etária que acomete os esquizofrênicos, os viciados mesmo em crack. Lógico, a gente atende adolescentes também. Só que a maioria dos adolescentes são resistentes aos tratamentos, eles estão fora do serviço.
Quais os dois extremos de idade que você já atendeu?
A gente chegou a atender uma criança de 13 anos que se prostituía por 3 reais para interar um “pedra” de 5 reais.
Como ele foi encaminhada para o CAPS?
Pelo Conselho Tutelar. O Conselho percebeu, responsabilizou a família, trouxe, fez toda uma implicância.
A família sabia?
Nesse caso a mãe já era drogada também. Uma situação bem complicada... E adulto, o usuário de crack não chega a ficar idoso, ele morre mais cedo do que possa imaginar. Adulto-jovem já está morrendo. E uma coisa que os redutores de dano quando estão em campo, trabalhando lá na boca, conversando com os traficantes e o traficante não gosta de que os redutores de dano estejam lá porque ele diz: “não, você está pedindo para meu usuário não usar muito a droga que eu estou vendendo?”, e o redutor diz: “é claro que eu estou pedindo. Se ele usar demais ele vai morrer, cara, e tu não vai ter para quem vender! Ele vai morrer usando crack. Então tu tem que vender menos para ele”. Então os cara vão, conversam e entram num acordo.
Como é a abordagem?
Aqui não tem em Campina. Mas existem os redutores de dano na comunidade, no local aonde está sendo fornecido, conversam com os traficantes, com os usuários, para que se eles não venham até o serviço eles façam a redução de danos lá. Tem gente que tem preconceito contra o serviço. “Ah, tio, vó chegar lá no tratamento e ela não vai me atender não, vai dizer que sou um safado, ladrão, um pilantra”, e ele vai lá desmistificar: “não cara, vai lá que tu vai ser atendido, tu vai passar por um médico”, “não, vo lá baixar por médico, os cara não vão me atender não!”. Ele acha que isso acontece, mas aqui a gente vai atender ele, vai acolher. Se estiver precisando de uma emergência vai encaminhar para outro serviço da rede substitutiva. Então isso precisa ser muito bem amarrado. As políticas públicas têm contemplar mais serviço de CAPS, tem que ter CAPS para adolescentes, te que ter CAPS 24h. A gente não quer que leve para um hospital psiquiátrico.
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